4.2.14

Filosofia da Educação -I período
TEMAS DE
FILOSOFIA
MARIA LÚCIA DE ARRUDA ARANHA
MARIA HELENA PIRES MARTINS
 
 
CAPÍTULO 6
O conhecimento filosófico
 
Conta à tradição que Diógenes, filósofo grego da escola cínica, século IV a.C., dis­cípulo de Antístenes, aceitando o princípio de que para atingir a verdadeira felicidade é necessário "viver como um cachorro", abandona sua casa e passa a viver em um barril.
Já Euclides, da escola pitagórica, também do século IV a.C, ouviu esta pergunta de um discípulo:
— Mestre, o que ganharei aprendendo geometria?
Como resposta, o famoso geômetra e filó­sofo ordenou a um escravo:
—Dê-lhe uma moeda, uma vez que pre­cisa ganhar algo, além do que aprende.
Essas histórias e muitas outras, que relatam a excentricidade de filósofos antigos e modernos, revelam a imagem mais comum que temos dessas pessoas: são indivíduos com "a cabeça na lua", preocupados com problemas que nada têm a ver com o cotidiano ou com a vi­da prática.
Mas se o filósofo fosse assim, por que, então, condenar Sócrates, na Gré­cia antiga, a morrer bebendo cicuta? Por que proibir a leitura dos livros de Karl Marx?
Talvez a divulgação da imagem do fi­lósofo como sendo uma pessoa "desli­gada" do mundo seja exatamente a de­fesa da sociedade contra o "perigo" que ele representa. Perigo? Que perigo po­de representar um homem que só faz discursos? Que só lida com a palavra?
 
PRIMEIRA PARTE — O que é filosofia
A tarefa da filosofia
 
A filosofia é um modo de pensar, é uma postura diante do mundo. A filo­sofia não é um conjunto de conheci­mentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. Ela é, antes de mais nada, uma prática de vida que procura pensar os acontecimentos além da sua pura aparência. Assim, ela po­de se voltar para qualquer objeto. Po­de pensar a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a re­ligião; pode pensar a arte; pode pen­sar o próprio homem em sua vida coti­diana. Uma história em quadrinhos ou uma canção popular podem ser objeto da reflexão filosófica.
A filosofia é um jogo irreverente que parte do que existe, critica, coloca em dúvida, faz perguntas importunas, abre a porta das possibilidades, faz-nos en­trever outros mundos e outros modos de compreender a vida.
A filosofia incomoda porque questio­na o modo de ser das pessoas, das cul­turas, do mundo. Questiona as práti­cas política, científica, técnica, ética, econômica, cultural e artística. Não há área onde ela não se meta, não inda­gue, não perturbe. E, nesse sentido, a filosofia é perigosa, subversiva, pois vi­ra a ordem estabelecida de cabeça para baixo.
Podemos, agora, perceber a razão da condenação de Sócrates na Antiguidade ou da proibição da leitura de Karl Marx no Brasil pós-64. Ambos foram (e são, ainda) subversivos, perigosos, pois, ao indagar sobre a realidade de sua época, fizeram surgir novas possi­bilidades de comportamento e de rela­ção social. Do ponto de vista do poder estabelecido, mereceram a morte e/ou o banimento de suas obras.
 
O pensamento filosófico
Quando a filosofia surge, entre os gregos, no século VI a.C, ela engloba tanto a indagação filosófica propria­mente dita quanto o que hoje chama­mos de conhecimento científico. O fi­lósofo teorizava sobre todos os assun­tos, procurando responder não só ao porquê das coisas, mas, também, ao co­mo, ou seja, ao funcionamento. É por isso que Euclides, Tales e Pitágoras são filósofos e dedicam-se também ao es­tudo da geometria. Aristóteles, por sua vez, debruça-se sobre problemas físicos e astronômicos, na medida em que es­ses problemas interessam à cultura e à sociedade de sua época.
É só a partir do século XVII, com Galileu e o aperfeiçoamento do método científico (ver Cap. 7), fundado na ob­servação, experimentação e matematização dos resultados, que a ciência co­meça a se constituir como forma espe­cífica de abordagem do real e a se des­tacar da filosofia. Aparecem, pouco a pouco, as ciências particulares, que in­vestigam a realidade sob pontos de vis­ta específicos: à física interessam os mo­vimentos dos corpos; à biologia, a na­tureza dos seres vivos; à química, as transformações das substâncias; à as­tronomia, os corpos celestes; à psico­logia, os mecanismos do funcionamen­to da mente humana; à sociologia, a or­ganização social etc.
O conhecimento é fragmentado en­tre as várias ciências, pois cada uma se ocupa somente de uma pequena parte do real. As afirmações de cada uma de­las são chamadas juízos de realidade, uma vez que se referem aos fenômenos e pretendem mostrar como estes ocor­rem e como se relacionam com outros fenômenos. De posse desses dados so­bre o funcionamento dos fenômenos naturais e humanos, torna-se possível prevê-los e controlá-los.
A filosofia trata dessa mesma reali­dade, mas, em vez de fragmentá-la em conhecimentos particulares, toma-a co­mo totalidade de fenômenos, ou seja, considera a realidade a partir de uma visão de conjunto. Qualquer que seja o problema, a reflexão filosófica consi­dera cada um de seus aspectos, relacionando-o ao contexto dentro do qual ele se insere e restabelecendo a in­tegridade do universo humano. Do ponto de vista filosófico, por exemplo, é impossível considerar a inflação bra­sileira somente a partir de princípios econômicos. É preciso relacioná-la com interesses de classes, interesses políti­cos, interesses sociais. Um país econo­micamente instável é um país política e socialmente instável. À ciência econô­mica interessa somente verificar como a inflação funciona para poder controlá-la, sem se incomodar com os reflexos que esse controle possa ter sobre a sociedade.
É por isso que, sem desmerecer o co­nhecimento especializado buscado pe­las várias ciências, defendemos a neces­sidade da reflexão filosófica, reflexão es­ta que faz a crítica dos fundamentos de conhecimento e da ação humanos. Ca­be ao filósofo refletir sobre o que é ciên­cia, o que é método científico, sua vali­dade e limites. A ciência é realmente um conhecimento objetivo? O que é a objetividade e até que ponto um sujei­to histórico — o cientista — pode ser ob­jetivo? Cabe ao filósofo, também, refle­tir sobre a condição humana atual: o que é o homem? o que é liberdade? o que é trabalho? quais as relações entre homem e trabalho? etc. Nem mesmo a escola foge ao crivo da reflexão filosó­fica: para que exista, é necessário que partamos de uma visão de homem co­mo ser incompleto, portanto educável. Para sobreviver, os animais não preci­sam ser educados, pois guiam-se pelos instintos. Só os "educamos", isto é, domesticamos, para acomodá-los às nos­sas necessidades humanas. O caso dos homens é diferente. Mas para que o ser humano é educado? Para o pleno exer­cício da liberdade e da responsabilida­de ou só para se manter dentro da or­dem estabelecida? Em outras palavras, educamos para que cada homem saiba pensar por si próprio ou para que sai­ba aceitar as regras que outros pensa­ram para ele?
A filosofia quer encontrar o signifi­cado mais profundo dos fenômenos. Não basta saber como funcionam, mas o que significam na ordem geral do mundo humano. A filosofia emite juí­zos de valor ao julgar cada fato, cada ação em relação ao todo. A filosofia vai além daquilo que é, para propor como poderia ser. É, portanto, indispensável para a vida de todos nós, que deseja­mos ser seres humanos completos, ci­dadãos livres e responsáveis por nos­sas escolhas.
Assim, o filosofar é uma prática que parte da teoria e resulta em outras teorias.
 
Características do pensamento filosófico
O trabalho do filósofo é refletir so­bre a realidade, qualquer que seja ela, descobrindo seus significados mais profundos.
Como isso é feito?
Em primeiro lugar, vamos estabele­cer o que é a reflexão. Refletir é pen­sar, considerar cuidadosamente o que já foi pensado. Como um espelho que reflete a nossa imagem, a reflexão do filósofo deixa ver, revela, mostra, tra­duz os valores envolvidos nos aconte­cimentos e nas ações humanas.
Para chegar a essa revelação, a refle­xão filosófica, segundo Demerval Saviani, deve ser:
Radical — ou seja, chegar até a raiz dos acontecimentos, isto é, aos seus fundamentos; à sua origem, não só cro­nológica, mas no sentido de chegar aos valores originais que possibilitaram o fato. A reflexão filosófica, portanto, é uma reflexão em profundidade.
Rigorosa — isto é, seguir um mé­todo adequado ao objeto em estudo, com todo o rigor, colocando em ques­tão as respostas mais superficiais, co­muns à sabedoria popular e a algumas generalizações científicas apressadas.
De conjunto — como já foi dito an­teriormente, a filosofia não considera os problemas isoladamente, mas dentro de um conjunto de fatos, fatores e va­lores que estão relacionados entre si. A reflexão filosófica contextualiza os pro­blemas tanto verticalmente, dentro do desenvolvimento histórico, quanto ho­rizontalmente, relacionando-os a outros aspectos da situação da época.
Assim, embora os sistemas filosófi­cos possam chegar a conclusões diver­sas, dependendo das premissas de par­tida e da situação histórica dos próprios pensadores, o processo do filosofar será sempre marcado por essas característi­cas, resultando em uma reflexão rigo­rosa, radical e de conjunto.
 
 
Ceticismo e dogmatismo em filosofia
A partir do que foi colocado, perce­bemos que para filosofar não podemos manter nem uma atitude cética nem sua contrapartida, uma atitude dogmática perante o mundo e o conhecimento hu­mano. Se, de um lado, necessitamos de certezas, de conhecimento válido para orientar nossas ações, de outro, sabe­mos que essas certezas fazem parte de momentos históricos, de pontos de vis­ta a partir dos quais analisamos o nos­so estar no mundo.
 
 
O ceticismo
O cético, no sentido comum, é aque­le que desconfia de tudo, que não acre­dita nas possibilidades que estão a sua frente. Por exemplo, alguns alunos, no início do segundo semestre letivo, dian­te do seu mau desempenho escolar, tornam-se céticos com relação à possi­bilidade de aprovação e não se esfor­çam mais.
Do ponto de vista filosófico, porém, dá-se o nome de ceticismo à corrente de pensamento que duvida de toda e qualquer possibilidade de se chegar ao conhecimento verdadeiro.
Por exemplo, Montaigne, filósofo francês do século XVI, partindo da idéia de que toda verdade é relativa à épo­ca, ao contexto histórico e à situação pessoal de cada um, afirma que o ho­mem deve renunciar à pretensão de chegar a qualquer certeza. Não há pos­sibilidade sequer de saber se as sensa­ções são reais ou imaginadas. Assim sendo, os homens devem abster-se de emitir qualquer juízo, uma vez que to­da afirmação é passível de dúvida.
Para o cético, portanto, o sujeito é in­capaz de apreender o objeto de conhe­cimento.
Na sua forma menos radical, o ceti­cismo apresenta-se como probabilida­de, isto é, embora seja impossível ter a certeza de que os juízos estão de acor­do com a realidade, pode-se afirmar a probabilidade de que estejam.
A atitude cética é típica das épocas de crise, quando verdades estabeleci­das são destruídas sem que se tenha, ainda, estabelecido novos princípios so­bre os quais fundamentar o conheci­mento e as ações. Nesses momentos, coloca-se tudo em dúvida, examinam-se todas as certezas, opiniões e crenças, numa busca de solo seguro sobre o qual erigir uma nova construção de saber.
Na filosofia moderna, o ceticismo se manifesta através do empirismo de Hume, filósofo escocês do século XVIII, que, como veremos mais adiante, afir­ma que, na impossibilidade de conhe­cer as coisas em si, o homem se baseia na crença ou no hábito para poder agir.
O ceticismo, ainda, inspira a atitude crítica e questionadora da filosofia con­temporânea, colocando questões sobre a relatividade do conhecimento e os li­mites da razão.
 
O dogmatismo
No senso comum, o dogmático, por outro lado, é a pessoa que acredita ter a posse da verdade e se recusa ao diá­logo, não admitindo nenhum questio­namento de suas certezas. Muitas ve­zes, os pais são dogmáticos e recusam-se a colocar em discussão certas regras que, para eles, são as únicas verdadei­ras e corretas.
Em filosofia, entretanto, dá-se o no­me de dogmatismo à doutrina ou ati­tude que afirma, de forma absoluta, a capacidade humana de chegar a verda­des seguras, através do uso exclusivo da razão. É essa mesma crença cega na razão que faz com que o dogmático não admita discussões.
Do ponto de vista histórico, o dog­matismo é a atitude dos primeiros filó­sofos, os chamados pré-socráticos, que têm como certo o poder de conhecer a realidade tal qual ela é. Os sofistas são os primeiros a problematizar a questão da verdade do conhecimento. Entretan­to, é com Kant, no século XVIII, que a denominação dogmatismo passa a as­sumir conotação mais específica. Se­gundo ele, dogmatismo é toda e qual­quer posição que acredite estar na posse da certeza, ou da verdade, antes de fa­zer a crítica da faculdade de conhecer. O "criticismo" kantiano só se define em oposição aos dois perigos inversos: o empirismo (que tem um tanto de ce­ticismo) e o dogmatismo.
                                                 
 
EXERCÍCIOS
1. Levante, de acordo com o texto, as características do conhecimento filosófico.
2. Resuma, em palavras suas, o que é a atitude cética e o que é ceticismo em filosofia. A partir de sua experiência de vida, procure exemplos de atitudes céticas.
3. Resuma, em palavras suas, o que é a atitude dogmática e o que é dogmatismo em filosofia. A partir de sua experiência de vida, cite um exemplo de atitude dogmática.
4. "Cabe a um filósofo ocupar um posto retirado. Um filósofo é a consciência, culpada, cheia de vergonha, de uma sociedade. Parece-me que o filósofo moderno deve ser um pária, um malsucedido, e seria um péssimo sinal, para ele, ser coberto de glória." (René Garrigues.)
a) Explique por que o filósofo deve ocupar um posto retirado, discutindo o conceito de "retirado"
b) Por que o filósofo encarna a consciência culpada da sociedade?
c) Em que sentido o fato de ser bem-sucedido é um péssimo sinal para o filósofo?
5. "É próprio da filosofia o movimento pelo qual, não sem esforços e apalpadelas e so­nhos e ilusões, nos desembaraçamos daquilo que tomamos por verdadeiro e procura­mos outras regras para o jogo. É próprio da filosofia o deslocamento e a transforma­ção dos esquemas do pensamento, a modificação dos valores adquiridos e todo o tra­balho que se faz para pensar de outro modo, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente daquilo que se é. Desse ponto de vista, os últimos trinta anos vêm sendo um período de atividade filosófica intensa. A mútua interferência entre a análise, a pesquisa, a crítica 'erudita' ou 'teórica' e as mudanças no comportamento, na condu­ta real das pessoas, em sua maneira de ser, em sua relação consigo mesmas e com os outros foi constante e considerável." (O filósofo disfarçado. In Filosofias: entrevistas do te Monde. São Paulo, Ática, 1990. p. 26.)
a) Discuta a atividade filosófica em face do "ser" e do "poder ser".
b) Mostre a relação entre filosofia e vida, por meio desse texto.
c) Discuta, a partir desse texto, as atitudes cética e dogmática em filosofia.
6. A partir dos textos de leitura complementar de Jaspers (texto 1) e de Bencivenga (texto 2), faça uma dissertação sobre "O que é filosofia".
 


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