Filosofia da Educação -I período
TEMAS DE
FILOSOFIA
MARIA
LÚCIA DE ARRUDA ARANHA
MARIA
HELENA PIRES MARTINS
CAPÍTULO 6
O conhecimento
filosófico
Conta à
tradição que Diógenes, filósofo grego da escola cínica, século IV a.C., discípulo
de Antístenes, aceitando o princípio de que para atingir a verdadeira
felicidade é necessário "viver como um cachorro", abandona sua casa e
passa a viver em um barril.
Já Euclides,
da escola pitagórica, também do século IV a.C, ouviu esta pergunta de um
discípulo:
— Mestre, o
que ganharei aprendendo geometria?
Como
resposta, o famoso geômetra e filósofo ordenou a um escravo:
—Dê-lhe uma
moeda, uma vez que precisa ganhar algo, além do que aprende.
Essas histórias e muitas outras, que relatam
a excentricidade de filósofos antigos e modernos, revelam a imagem mais comum
que temos dessas pessoas: são indivíduos com "a cabeça na lua", preocupados com problemas que nada têm
a ver com o cotidiano ou com a vida prática.
Mas se o filósofo fosse assim, por que,
então, condenar Sócrates, na Grécia antiga, a morrer bebendo cicuta? Por que
proibir a leitura dos livros de Karl Marx?
Talvez a divulgação da imagem do filósofo
como sendo uma pessoa "desligada" do mundo seja exatamente a defesa
da sociedade contra o "perigo" que ele representa. Perigo? Que perigo
pode representar um homem que só faz discursos? Que só lida com a palavra?
PRIMEIRA PARTE — O que é filosofia
A tarefa da filosofia
A filosofia é um modo de pensar, é uma postura diante do
mundo. A filosofia não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema
acabado, fechado em si mesmo. Ela é, antes de mais nada, uma prática de vida
que procura pensar os acontecimentos além da sua pura aparência. Assim, ela pode
se voltar para qualquer objeto. Pode pensar a ciência, seus valores, seus
métodos, seus mitos; pode pensar a religião; pode pensar a arte; pode pensar
o próprio homem em sua vida cotidiana. Uma história em quadrinhos ou uma
canção popular podem ser objeto da reflexão filosófica.
A filosofia é um jogo irreverente que parte
do que existe, critica, coloca em dúvida, faz perguntas importunas, abre a
porta das possibilidades, faz-nos entrever outros mundos e outros modos de
compreender a vida.
A filosofia incomoda porque questiona o modo
de ser das pessoas, das culturas, do mundo. Questiona as práticas política,
científica, técnica, ética, econômica, cultural e artística. Não há área onde
ela não se meta, não indague, não perturbe. E, nesse sentido, a filosofia é
perigosa, subversiva, pois vira a ordem estabelecida de cabeça para baixo.
Podemos, agora, perceber a razão da
condenação de Sócrates na Antiguidade ou da proibição da leitura de Karl Marx
no Brasil pós-64. Ambos foram (e são, ainda) subversivos, perigosos, pois, ao
indagar sobre a realidade de sua época, fizeram surgir novas possibilidades de
comportamento e de relação social. Do ponto de vista do poder estabelecido,
mereceram a morte e/ou o banimento de suas obras.
O pensamento filosófico
Quando a
filosofia surge, entre os gregos, no
século VI a.C, ela engloba tanto a indagação filosófica propriamente dita
quanto o que hoje chamamos de conhecimento científico. O filósofo teorizava
sobre todos os assuntos, procurando responder não só ao porquê das coisas, mas, também, ao como, ou seja, ao funcionamento. É por isso que Euclides, Tales e
Pitágoras são filósofos e dedicam-se também ao estudo da geometria.
Aristóteles, por sua vez, debruça-se sobre problemas físicos e astronômicos, na
medida em que esses problemas interessam à cultura e à sociedade de sua época.
É só a
partir do século XVII, com Galileu e o aperfeiçoamento do método científico
(ver Cap. 7), fundado na observação, experimentação e matematização dos
resultados, que a ciência começa a se constituir como forma específica de
abordagem do real e a se destacar da filosofia. Aparecem, pouco a pouco, as
ciências particulares, que investigam a realidade sob pontos de vista
específicos: à física interessam os movimentos dos corpos; à biologia, a natureza
dos seres vivos; à química, as transformações das substâncias; à astronomia,
os corpos celestes; à psicologia, os mecanismos do funcionamento da mente humana; à sociologia, a organização
social etc.
O
conhecimento é fragmentado entre as várias ciências, pois cada uma se ocupa
somente de uma pequena parte do real. As afirmações de cada uma delas são
chamadas juízos de realidade, uma vez que se referem aos fenômenos e pretendem
mostrar como estes ocorrem e como se relacionam com outros fenômenos. De posse
desses dados sobre o funcionamento dos fenômenos naturais e humanos, torna-se
possível prevê-los e controlá-los.
A filosofia
trata dessa mesma realidade, mas, em vez de fragmentá-la em conhecimentos
particulares, toma-a como totalidade de fenômenos, ou seja, considera a
realidade a partir de uma visão de conjunto. Qualquer que seja o problema, a
reflexão filosófica considera cada um de seus aspectos, relacionando-o ao
contexto dentro do qual ele se insere e restabelecendo a integridade do
universo humano. Do ponto de vista filosófico, por exemplo, é impossível
considerar a inflação brasileira somente a partir de princípios econômicos. É
preciso relacioná-la com interesses de classes, interesses políticos,
interesses sociais. Um país economicamente instável é um país política e
socialmente instável. À ciência econômica interessa somente verificar como a
inflação funciona para poder controlá-la, sem se incomodar com os reflexos que
esse controle possa ter sobre a sociedade.
É por isso que, sem desmerecer o conhecimento
especializado buscado pelas várias ciências, defendemos a necessidade da
reflexão filosófica, reflexão esta que faz a crítica dos fundamentos de
conhecimento e da ação humanos. Cabe ao filósofo refletir sobre o que é ciência,
o que é método científico, sua validade e limites. A ciência é realmente um
conhecimento objetivo? O que é a objetividade e até que ponto um sujeito
histórico — o cientista — pode ser objetivo? Cabe ao filósofo, também, refletir sobre a condição humana atual: o que
é o homem? o que é liberdade? o que é trabalho? quais as relações entre homem e
trabalho? etc. Nem mesmo a escola foge ao crivo da reflexão filosófica: para
que exista, é necessário que partamos de uma visão de homem como ser
incompleto, portanto educável. Para sobreviver, os animais não precisam ser
educados, pois guiam-se pelos instintos. Só os "educamos", isto é,
domesticamos, para acomodá-los às nossas necessidades humanas. O caso dos
homens é diferente. Mas para que o ser humano é educado? Para o pleno exercício
da liberdade e da responsabilidade ou só para se manter dentro da ordem
estabelecida? Em outras palavras, educamos para que cada homem saiba pensar por
si próprio ou para que saiba aceitar as regras que outros pensaram para ele?
A filosofia quer encontrar o significado
mais profundo dos fenômenos. Não basta saber como funcionam, mas o que
significam na ordem geral do mundo humano. A filosofia emite juízos de valor
ao julgar cada fato, cada ação em relação ao todo. A filosofia vai além daquilo
que é, para propor como poderia ser. É, portanto, indispensável para a vida de
todos nós, que desejamos ser seres humanos completos, cidadãos livres e
responsáveis por nossas escolhas.
Assim, o filosofar é uma prática que parte da
teoria e resulta em outras teorias.
Características do pensamento filosófico
O trabalho do filósofo é refletir sobre a realidade,
qualquer que seja ela, descobrindo seus
significados mais profundos.
Como isso é feito?
Em primeiro lugar, vamos estabelecer o que é
a reflexão. Refletir é pensar, considerar cuidadosamente o que já foi pensado.
Como um espelho que reflete a nossa imagem, a reflexão do filósofo deixa ver,
revela, mostra, traduz os valores envolvidos nos acontecimentos e nas ações
humanas.
Para chegar a essa revelação, a reflexão filosófica,
segundo Demerval Saviani, deve ser:
• Radical
— ou seja, chegar até a raiz dos acontecimentos, isto é, aos seus
fundamentos; à sua origem, não só cronológica, mas no sentido de chegar aos
valores originais que possibilitaram o fato. A reflexão filosófica, portanto, é
uma reflexão em profundidade.
• Rigorosa
— isto é, seguir um método adequado ao objeto em estudo, com todo o rigor,
colocando em questão as respostas mais superficiais, comuns à sabedoria
popular e a algumas generalizações científicas apressadas.
• De
conjunto — como já foi dito anteriormente, a filosofia não considera os
problemas isoladamente, mas dentro de um conjunto de fatos, fatores e valores
que estão relacionados entre si. A reflexão filosófica contextualiza os problemas
tanto verticalmente, dentro do desenvolvimento histórico, quanto horizontalmente,
relacionando-os a outros aspectos da situação da época.
Assim, embora os sistemas filosóficos possam
chegar a conclusões diversas, dependendo das premissas de partida e da
situação histórica dos próprios pensadores, o processo do filosofar será sempre
marcado por essas características, resultando em uma reflexão rigorosa,
radical e de conjunto.
Ceticismo e dogmatismo em filosofia
A partir do que foi colocado, percebemos que
para filosofar não podemos manter nem uma atitude cética nem sua contrapartida,
uma atitude dogmática perante o mundo e o conhecimento humano. Se, de um lado,
necessitamos de certezas, de conhecimento válido para orientar nossas ações, de
outro, sabemos que essas certezas fazem parte de momentos históricos, de
pontos de vista a partir dos quais analisamos o nosso estar no mundo.
O ceticismo
O cético, no sentido comum, é aquele que
desconfia de tudo, que não acredita nas possibilidades que estão a sua frente.
Por exemplo, alguns alunos, no início do segundo semestre letivo, diante do
seu mau desempenho escolar, tornam-se céticos com relação à possibilidade de
aprovação e não se esforçam mais.
Do ponto de vista filosófico, porém, dá-se o
nome de ceticismo à corrente de pensamento que duvida de toda e qualquer
possibilidade de se chegar ao conhecimento verdadeiro.
Por exemplo, Montaigne, filósofo francês do
século XVI, partindo da idéia de que toda verdade é relativa à época, ao
contexto histórico e à situação pessoal de cada um, afirma que o homem deve
renunciar à pretensão de chegar a qualquer certeza. Não há possibilidade
sequer de saber se as sensações são reais ou imaginadas. Assim sendo, os
homens devem abster-se de emitir qualquer juízo, uma vez que toda afirmação é
passível de dúvida.
Para o cético, portanto, o sujeito é incapaz
de apreender o objeto de conhecimento.
Na sua forma menos radical, o ceticismo
apresenta-se como probabilidade, isto é, embora seja impossível ter a certeza
de que os juízos estão de acordo com a realidade, pode-se afirmar a
probabilidade de que estejam.
A atitude cética é típica das épocas de
crise, quando verdades estabelecidas são destruídas sem que se tenha, ainda,
estabelecido novos princípios sobre os quais fundamentar o conhecimento e as
ações. Nesses momentos, coloca-se tudo em dúvida, examinam-se todas as
certezas, opiniões e crenças, numa busca de solo seguro sobre o qual erigir uma
nova construção de saber.
Na filosofia moderna, o ceticismo se
manifesta através do empirismo de Hume, filósofo escocês do século XVIII, que,
como veremos mais adiante, afirma que, na impossibilidade de conhecer as
coisas em si, o homem se baseia na crença ou no hábito para poder agir.
O ceticismo, ainda, inspira a atitude crítica
e questionadora da filosofia contemporânea, colocando questões sobre a
relatividade do conhecimento e os limites da razão.
O dogmatismo
No senso comum, o dogmático, por outro lado, é a pessoa que acredita ter a posse da
verdade e se recusa ao diálogo, não admitindo nenhum questionamento de suas
certezas. Muitas vezes, os pais são dogmáticos e recusam-se a colocar em
discussão certas regras que, para eles, são as únicas verdadeiras e corretas.
Em filosofia, entretanto, dá-se o nome de
dogmatismo à doutrina ou atitude que afirma, de forma absoluta, a capacidade
humana de chegar a verdades seguras, através do uso exclusivo da razão. É essa
mesma crença cega na razão que faz com que o dogmático não admita discussões.
Do ponto de vista histórico, o dogmatismo é
a atitude dos primeiros filósofos, os chamados pré-socráticos, que têm como
certo o poder de conhecer a realidade tal qual ela é. Os sofistas são os
primeiros a problematizar a questão da verdade do conhecimento. Entretanto, é com Kant, no século XVIII, que a
denominação dogmatismo passa a assumir conotação mais específica. Segundo
ele, dogmatismo é toda e qualquer posição que acredite estar na posse da
certeza, ou da verdade, antes de fazer a crítica da faculdade de conhecer. O
"criticismo" kantiano só se define em oposição aos dois perigos
inversos: o empirismo (que tem um tanto de ceticismo) e o dogmatismo.
EXERCÍCIOS
1. Levante, de acordo com o texto, as
características do conhecimento filosófico.
2. Resuma, em palavras suas, o que é a
atitude cética e o que é ceticismo em filosofia. A partir de sua experiência de
vida, procure exemplos de atitudes céticas.
3. Resuma, em palavras suas, o que é a
atitude dogmática e o que é dogmatismo em filosofia. A partir de sua
experiência de vida, cite um exemplo de atitude dogmática.
4. "Cabe a um filósofo ocupar um posto
retirado. Um filósofo é a consciência, culpada, cheia de vergonha, de uma
sociedade. Parece-me que o filósofo moderno deve ser um pária, um malsucedido,
e seria um péssimo sinal, para ele, ser coberto de glória." (René
Garrigues.)
a) Explique por que o filósofo deve ocupar um
posto retirado, discutindo o conceito de "retirado"
b) Por que o filósofo encarna a consciência
culpada da sociedade?
c) Em que sentido o fato de ser bem-sucedido
é um péssimo sinal para o filósofo?
5. "É próprio da filosofia o movimento
pelo qual, não sem esforços e apalpadelas e sonhos e ilusões, nos
desembaraçamos daquilo que tomamos por verdadeiro e procuramos outras regras
para o jogo. É próprio da filosofia o deslocamento e a transformação dos
esquemas do pensamento, a modificação dos valores adquiridos e todo o trabalho
que se faz para pensar de outro modo, para fazer outra coisa, para tornar-se
diferente daquilo que se é. Desse ponto de vista, os últimos trinta anos vêm
sendo um período de atividade filosófica intensa. A mútua interferência entre a
análise, a pesquisa, a crítica 'erudita' ou 'teórica' e as mudanças no
comportamento, na conduta real das pessoas, em sua maneira de ser, em sua
relação consigo mesmas e com os outros foi constante e considerável." (O
filósofo disfarçado. In Filosofias: entrevistas do te Monde. São Paulo, Ática,
1990. p. 26.)
a) Discuta a atividade filosófica em face do
"ser" e do "poder ser".
b) Mostre a relação entre filosofia e vida,
por meio desse texto.
c) Discuta, a partir desse texto, as atitudes
cética e dogmática em filosofia.
6. A partir dos textos de leitura
complementar de Jaspers (texto 1) e de Bencivenga (texto 2), faça uma
dissertação sobre "O que é filosofia".